A NECESSIDADE DO APONTAMENTO DE FONTE DE CUSTEIO EM CASO DE CRIAÇÃO DE NOVAS DESPESAS NÃO PREVISTAS EM CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

A ideia de correspondência entre criação de nova despesa e de simultânea indicação de fonte de custeio é observada em diversos pontos da legislação brasileira.

A ideia central do ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente no direito público – direito esse que rege os contratos administrativos¹ – é a de que, sempre que o Estado criar uma nova despesa, simultaneamente, deverá ele indicar a fonte de custeio para tal despesa.

 

Citem-se alguns exemplos:

A Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu art. 17, §1º, estabelece que os atos que criarem despesas obrigatórias ou continuadas devem demonstrar a origem dos recursos para seu custeio².

Tem-se, ainda, o art. 195, §5º da CFRB/88, que mais expresso não poderia ser:

“Art. 195 (…)

  • 5º – Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.”

Por fim, o art. 112, §2º, da CERJ:

“Art. 112 (…)

  • 2º Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado de forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio.”

 

O supracitado parágrafo 2º foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.225/RJ, cujo Relator fora o Ministro Cezar Peluso, que, à oportunidade, assim se manifestou:

‘’A exigência de indicação da fonte de custeio para autorizar gratuidade na fruição de serviços públicos em nada impede sejam estes prestados graciosamente, donde não agride nenhum direito fundamental do cidadão. A medida reveste-se, aliás, de providencial austeridade, uma vez que se preordena a garantir a gestão responsável da coisa pública, o equilíbrio na equação econômico-financeira informadora dos contratos administrativos e, em última análise, a própria viabilidade e continuidade dos serviços públicos e das gratuidades concedidas³.’’

Interessante é observar que, no julgamento da referida ADI, o Ministro Cesar Peluzo deixa evidente a impossibilidade de alterar contrato em curso sem a indicação de fonte de custeio, justamente a situação objeto de discussão no presente texto4:

É justamente para afastar situações como o objeto deste texto, previstas pelo eminente Ministro Cezar Peluso em seu voto, que há a obrigatoriedade da indicação fonte de custeio quando se pretende alterar cláusulas do contrato administrativo em curso com impacto no equilíbrio econômico e financeiro da concessão.

Ademais, se a lei vai indicar a fonte de custeio, estará criando despesa para o executivo por meio de alteração de alteração do estabelecido em contrato administrativo oriundo de licitação e, neste caso, o Projeto de Lei deve ser de iniciativa do Poder Executivo e não do Legislativo por vedação constitucional, não cabendo o argumento que a sanção da Lei extingue o vício, vejamos:

A sanção do projeto de lei não convalida o vício de inconstitucionalidade resultante da usurpação do poder de iniciativa. A ulterior aquiescência do chefe do Poder Executivo, mediante sanção do projeto de lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, não tem o condão de sanar o vício radical da inconstitucionalidade. Insubsistência da Súmula 5/STF.

[ADI 2.867,  rel. min. Celso de Mello, j. 3-12-2003, P, DJ de 9-2-2007.]

= ADI 2.305, rel. min. Cezar Peluso, j. 30-6-2011, P, DJE de 5-8-2011

Nesse mesmo sentido, importante citar trecho da ementada ADI nº 2.733/ES, cujo relator fora o Min. Eros Grau:

“A lei estadual afeta o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de obra pública, celebrado pela Administração capixaba, ao conceder descontos e isenções sem qualquer forma de compensação.” (ADI nº 2.733/ES. Rel. Min. Eros Grau. 26.10.2005)

               Não é demais dizer que tal obrigação surge para concretizar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, princípio este tão caro à legislação, conforme os artigos já mencionados.

Surge como dever decorrente do princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Ora, esvaziar-se-ia tal princípio caso a administração pública não o implementasse na prática, através das normas que dele derivam.

A esse respeito, e mais especificamente no âmbito dos serviços de transporte público, veja-se o art.9º, §1º da lei federal nº 12.587/12:

“Art. 9º O regime econômico e financeiro da concessão e o da permissão do serviço de transporte público coletivo serão estabelecidos no respectivo edital de licitação, sendo a tarifa de remuneração da prestação de serviço de transporte público coletivo resultante do processo licitatório da outorga do poder público.

  • 1º A tarifa de remuneração da prestação do serviço de transporte público coletivo deverá ser constituída pelo preço público cobrado do usuário pelos serviços somado à receita oriunda de outras fontes de custeio, de forma a cobrir os reais custos do serviço prestado ao usuário por operador público ou privado, além da remuneração do prestador.”

Conforme se vê, a tarifa deve, por força de comando legal, cobrir os reais custos do serviço prestado ao usuário, bem como da remuneração do prestador, e é composta pelo preço público cobrado do usuário somado à receita oriunda de outras fontes de custeio.

É óbvio que a criação de nova despesa, como, por exemplo, a imposição do encargo da refrigeração da frota de coletivos ou de isenção tarifária por meio de gratuidade de usuários pagantes e não contempladas em edital de licitação, irá aumentar o real custo de prestação do serviço, o que logicamente, impactará, de forma direta, o valor da tarifa, visto que esta deve cobrir tal custo.

Importante consignar que não se opõe a sempre melhoria da prestação do serviço, apenas requer, nos ditames da CRFB e no entendimento dos Tribunais Superiores, que seja indicada a fonte de custeio de tal medida, afinal, é por força de comando legal que o aumento da tarifa5 naturalmente se dará, seja pelo aumento do preço cobrado ao usuário, seja pelo aumento da receita oriunda de outras fontes de custeio.

O TJRJ, acerca de normas que criam despesas, mas que deixam de indicar fontes de custeio simultaneamente, assim já se posicionou:

 

DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI MUNICIPAL 3.538, DE 29 DE JUNHO DE 2016, DO MUNICÍPIO DE ANGRA DOS REIS, QUE DISPÕE SOBRE O PASSE LIVRE PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA FÍSICA, MENTAL, AUDITIVA, VISUAL, AUTISMO, PORTADORAS DE HANSENÍASE, CÂNCER, DOENÇA DA SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA, TUBERCULOSE, E SEUS ACOMPANHANTES E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. 1) Na hipótese em estudo, é aparente o vício de iniciativa, uma vez que, como cediço, compete ao Chefe do Poder Executivo dispor sobre a organização e funcionamento da administração municipal. Aí está o fumus boni iuris, diante do indício de ofensa ao disposto no artigo 145, VI, ‘a’, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, com a qual a Lei Orgânica dos Municípios deve guardar simetria. 2) Ademais, a previsão legal contestada nos autos também implica em provável violação ao comando contido no artigo 112, § 2º, da Carta Estadual, uma vez que não foram indicadas especificamente as fontes de custeio necessárias para cobrir os custos decorrentes das gratuidades concedidas pelo texto legal, de molde a manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com as concessionárias que prestam o serviço de transporte público. 3) Já o periculum in mora diz com o fato de que a continuidade da execução da lei em causa acarretará inafastáveis reflexos no equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de transporte público municipal, sendo certo que tal desequilíbrio deverá ser recomposto pelo Poder Executivo, a quem caberá arcar com os custos do incremento do sistema. 4) Deferimento da medida cautelar para suspender a eficácia do diploma legal impugnado. (DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 0038790-58.2017.8.19.0000. ÓRGÃO ESPECIAL. Des. Rel. HELENO RIBEIRO PEREIRA NUNES. Dje: 05/12/2017)

 

REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 4446/2016. MUNICÍPIO DE NOVA FRIBURGO. LEI MUNICIPAL QUE PROÍBE O CORTE DO FORNECIMENTO DOS SERVIÇOS DE ÁGUA, ESGOTO E ENERGIA ELÉTRICA AOS MUNÍCIPES E USUÁRIOS DE NOVA FRIBURGO QUE DEMONSTRAREM INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS PARA O PAGAMENTO DAS CONTAS MENSAIS E/OU REQUISITAR OS SERVIÇOS PARA MANTER EM FUNCIONAMENTO OS EQUIPAMENTOS ESSENCIAIS À MANUTENÇÃO DA SAÚDE E DA VIDA HUMANA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. [..]. 3. Inconstitucionalidade material da Lei Municipal nº 4449/2016. Violação ao artigo 112, §2º da Constituição Estadual, o qual prevê que ‘’não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado de forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio’’. A lei em discussão, além de acarretar desequilíbrio financeiro no contrato de concessão, não previu a referida fonte de custeio para que o poder público possa suportar o ônus decorrente do desajuste entre o valor da tarifa e a prestação adequada do serviço (art. 9º, §4º, da Lei de Concessões). 4. Declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4449/2016, com eficácia extunc, por afronta aos artigos 145, inciso VI, alínea ‘’a’’, 74, incisos V e VIII, e art. 112, §2º, todos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. 5. Procedência da Representação de Inconstitucionalidade, por vícios formal e material.(DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 0049586-11.2017.8.19.0000. Órgão Especial. Des. MARCO AURÉLIO BEZERRA DE MELO. Julgamento: 20/08/2018)

 

O poder executivo, quando da edição do decreto regulamentador ou mesmo de lei de sua iniciativa, deve indicar a fonte de custeio correspondente à despesa que cria. É de se observar que, caso assim não proceda, estará o Município editando norma inconstitucional, desrespeitando o comando do art. 112, §2º, da CERJ. Criará, em verdade, norma nati-morta, verdadeira aberração no ordenamento jurídico, como são as normas inconstitucionais. Donde se extrai que permitir que o Poder Executivo edite decreto ou encaminhe Projeto de Lei sem indicar a fonte de custeio é permitir a criação de norma inconstitucional.

 

 

¹Cf. art. 54 da lei nº 8.666/93: ‘’Art. 54.  Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.’’

²‘’§1o Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio’’

³ADI 3.225/RJ. Rel. Min. Cezar Peluso. Voto do Relator. P. 9. Dje 17/09/2007.

4ADI 3.225/RJ. Voto do Min. Cezar Peluso.

5art. 9º, §3º da Lei de concessões: ‘’Art. 9º (…)  § 3o Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.’’

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