Ultratividade da Norma X Autotutela e Presunção de Legitimidade dos Atos Administrativos

Recentemente, tivemos um caso em nosso escritório em que utilizamos o princípio jurídico da Ultratividade das normas (direito adquirido) para fazer valer o Direito do Nosso Cliente em razão de Portaria de Autarquia que havia sido revogada.

Dessa forma, a tese era fazer o princípio da ultratividade da norma prevalecer em face do princípio da autotutela dos atos administrativos pela administração pública e a presunção de legitimidade dos atos administrativos.

Nosso cliente precisava ter reconhecido os efeitos da ULTRATIVIDADE da legislação revogada (PORTARIA DETRO/PRES 1.252/2016) sobre os fatos ocorridos em seu período de vigência e consumados na vigência da legislação revogadora (PORTARIA DETRO/PRES 1.318/2017).

O imbróglio jurídico repousava no fato de o Juiz Singular e a Autarquia terem entendido que não há efeitos ultrativos no que se refere aos atos administrativos, em razão de os mesmos gozarem presunção de legitimidade, e que a revogação de Portarias está contida na possibilidade de autotutela da administração pública sobre os atos administrativos editados.

Pois bem…

Presunção, juridicamente considerada, significa acatar-se algo como verdadeiro, até prova em contrário.

Nas palavras de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO:

“é a qualidade, que reveste tais atos, de se presumirem verdadeiros e conformes ao Direito, até prova em contrário. Isto é: milita em favor deles uma presunção juris tantum de legitimidade; salvo expressa disposição legal, dita presunção só existe até serem questionados em juízo”. (In, Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 15ª edição, 2003).

No direito positivo brasileiro, esse postulado, além do disposto no art. 37, está contido no art. 5°, inciso II, da Constituição Federal e, como consequência, obriga o Estado, como administrador dos interesses da sociedade, a agir secundum legem, jamais contra legem ou mesmo praeter legem.  Assentada tal premissa, cabe dizer que a doutrina brasileira reconhece uma presunção relativa de legalidade como um dos atributos dos atos da administração pública e, em decorrência dela, presume-se que seus atos sejam verídicos e legítimos tanto em relação aos fatos por ela invocados como sua causa quanto no que toca às razões jurídicas que os motivaram. Nesse diapasão, tal presunção abrange dois aspectos: de um lado, a presunção de verdade, que diz respeito à certeza dos fatos; de outro lado, a presunção da legalidade, pois, se a administração pública se submete à lei, presume-se, conforme mencionado, até prova em contrário, que seus atos sejam praticados com observância das normas legais pertinentes.

Ensina Demian Guedes que a presunção de legalidade implica que ato exarado pela Administração se presume legal (conforme o direito), valendo até o reconhecimento jurídico de sua nulidade. Em decorrência de sua presumida correção, tem-se a presunção de veracidade do ato: seus pressupostos fáticos são admitidos como verdadeiros até prova em contrário.

(GUEDES, Demian. A presunção de veracidade e o estado democrático de direito: uma reavaliação que se impõe. In: _____. Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008.p.247).

Essa presunção de legitimidade do agir do Estado, que vem expressa no próprio conteúdo democrático do estado de direito, o submete, além da vontade juridicamente positivada — situada no campo do princípio da legalidade — também à vontade democraticamente expressa.

(MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo. 15. ed., 2. tir. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 89).

As linhas acima demonstram que se presume que o ato administrativo em vigor obedece ao direito positivado constitucional e infraconstitucional, o que significa dizer – juris tantum – que está em conformidade com o art. 6° da LINDB e com o inciso XXXVI do art. 5° da CRFB, ou seja, que reconhece a ultratividade das normas, os princípios do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da segurança jurídica.

Por isso a presunção de legitimidade do ato administrativo não militava em desfavor de nosso cliente como entendeu o juízo de piso; do contrário, reconhece a ultratividade das normas diante da sua presunção de conformidade com o ordenamento jurídico pátrio.

Sendo assim, destaca-se que no inter das relações jurídicas, o mundo jurídico vive da interação dinâmica de dois campos da realidade: um de natureza ideal objetiva e outro de natureza estritamente material. O campo ideal-objetivo da realidade é o plano normativo, isto é, o plano idealmente construído pelas formulações jurídico-normativas que determinam o que deve, pode ou não deve ser feito pelos homens que se encontram sujeitos à sua incidência, sob pena de sanção estatal. O outro campo, de natureza estritamente material, é o plano fático, ou seja, o plano da realidade empírica propriamente dita.

(CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 17-25).

O problema de se combinar a dinâmica dos fatos da vida e a dinâmica da mutabilidade das normas jurídicas é algo bastante complexo. Assim, quando descemos do plano normativo ao plano fático, ou seja, quando procuramos baixar da abstração à realidade concreta, quando intentamos aplicar os esquemas normativos rígidos à flexível e cambiante realidade, surge o conflito entre o antigo e o novo esquema normativo, postulando ambos a disciplina da realidade.

 

 

Tal conflito gira em torno de algumas indagações:

  1. a)uma lei pode projetar seus efeitos em situações verificadas antes do início de sua vigência?
  2. b)Um fato que começou a ser realizado sob a égide da lei antiga, mas consumou-se sob o reinado da lei nova, deve ser regido por qual diploma normativo?
  3. c)Qual lei deve ser aplicada em uma situação de fato, quando esta se constituiu sob o império da lei antiga, e permanece constituída projetando seus efeitos durante o período em que vige a lei nova?

 

Certamente, as respostas a essas questões não são de fácil elabo­ração. Essas indagações devem ser resolvidas tendo em conta duas preocupações fundamentais e conflitantes entre si. De um lado, está o progresso das instituições jurídicas, para que estas se adéquem con­tinuadamente às sempre renovadas necessidades de uma sociedade em permanente transformação, nos aspectos político, econômico e social. De outro lado, está a necessidade de assegurar aos particulares a estabilidade, ou segurança, imprescindível ao desenvolvimento de suas atividades.

(NORONHA, Fernando. Retroatividade, eficácia imediata e pós-atividade das leis: sua caracterização correta, como indispensável para solução dos problemas de direito intertemporal. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, n. 23, p. 91-92, abr./jun. 1988.)

A constituição federal tratou do tema do direito intertemporal no inciso XXXVI do art. 5°.

Importante, também, dizer que a ultratividade tem os fatos pen­dentes como campo de ação, ou seja, aquelas situações iniciadas sob a égide da lei anterior e que se perpetuam na sua existência jurídica sob o período de vigência temporal da lei nova. Dessa forma, a ultratividade implicará a exclusão dos efeitos imediatos e futuros da lei em vigor, no que tange particularmente a situações ou relações em curso no momento da alteração legislativa.

(CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 297.)

Assim, afirma ser adquirido todo direito que: 1) é consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo no qual o fato foi realizado, ainda que a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo; e que 2) nos termos da lei sob cujo império ocorreu o fato do qual se originou, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu.

(GABBA , C. F. Retroattivitá delle leggi. 3ª ed. Milão-Roma-Nápoles: Utet, 1891. v. 1, p. 10-11).

 

Destarte, depreende-se que, no direito constitucional pátrio, o direito adquirido configura-se como limite a quaisquer efeitos temporais de um novo diploma legislativo, sejam estes pretéritos, imediatos ou futuros. O direito adquirido apresenta-se, assim, na Carta Magna, como fenômeno do Direito Intertemporal.

 

Interessante é o posicionamento da doutrina que faz uma aproximação entre os conceitos de ultratividade com o direito adquirido.

“Por outro lado, a ultratividade também poderá ocorrer em razão da proteção do direito adquirido, o que é chamado por alguns autores de pós atividade. Neste caso, embora a lei nova se aplicar imediatamente fazendo cessar de pronto a vigência da norma anterior, os direitos adquiridos continuarão a ser regidos por efeitos remanescentes desta, em atenção à proteção contida no art. 5º XXXVI, da Constituição Federal. A norma antiga deixou de viger, mas os seus efeitos continuaram a reger uma determinada categoria de fatos, projetando-se para tempo ulterior à sua revogação.”

(LEVADA, Filipe Antonio Marchi. Direito Intertemporal e a Proteção do Direito Adquirido. Curitiba: Juruá, 2011, p. 51)

 

 

Em resumo, o Supremo Tribunal Federal deixou firmado, na ADin n° 493-0, que o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, erguido em garantia constitucional, abrange, indistintamente, leis de direito privado e de direito público, e refere-se, com igual força, aos facta praeterita e aos facta pendentia, vale dizer, alcança os efeitos dos fatos anteriores, ocorridos na vigência da lei nova, sucedendo, nesse caso, a sobrevivência da lei já revogada ou a sua ultratividade.

Nesse mesmo sentido, bem aponta José Eduardo Cardozo:

“ (…) incorre, pois em lamentável equívoco quem afirma que o respeito ao direito adquirido se define apenas como um limite à própria retroatividade. Em essência, qualifica este um limite a quaisquer efeitos temporais de um novo diploma legislativo, seja estes pretéritos, imediatos ou futuros (…) a regra do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, nada mais é do que um princípio que assegura a sobrevivência da lei velha ou, em outras palavras, a ultratividade desta. Com efeito, nestas hipóteses mesmo após o término de sua vigência, a lei revogada continua a disciplinar tais situações ao longo do próprio período de vigência da lei nova.”

(CARDOZO, Jose Eduardo Martins. Da Retroatividade da Lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 326-326)

O fenômeno da ultratividade é a proteção constitucional que se dá ao art. 5º, XXXVI, incluído nos direitos fundamentais na Constituição de 1988, prestigiando-se, assim, a segurança jurídica tão necessária num Estado democrático de direito.

Nesse sentido é que leciona José Afonso da Silva:

“Nos termos da constituição a segurança jurídica pode ser entendida num sentido amplo e num sentido estrito. No primeiro, ela assume o sentido geral da garantia, proteção, estabilidade de situação ou pessoa em vários campos, dependente do adjetivo que o qualifica. Em sentido estrito, a segurança jurídica consiste na garantia de estabilidade e certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica, esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu.”(…)

(SILVA, José Afonso da. Segurança Jurídica e Constituição in: IConstituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. 2ª ed., ver e ampl. 1. Reimpressão. Belo Horizonte: Forum, 2009, p. 17)g.n.

Para esse autor, um dos tipos de segurança jurídica reconhecidos pela Constituição federal é a segurança como proteção de direitos subjetivos. E, citando José Reinaldo Vanossi, assim expressou:

“(…) A segurança jurídica dos direitos subjetivos consiste no conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida. Uma importante condição de segurança jurídica, neste caso, está na relativa certeza de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída.”

(SILVA, José Afonso da. Segurança Jurídica e Constituição in: I Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. 2ª ed., ver e ampl. 1. Reimpressão. Belo Horizonte: Forum, 2009, p. 19).

Em outras palavras, uma importante condição de segurança jurídica está na relativa certeza de os direitos adquiridos, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada devem ser respeitados na sucessão das leis no tempo.

É de Celso Antonio Bandeira de Mello o entendimento que:

“(…) que, apesar de não ser radicado em qualquer dispositivo constitucional específico, o princípio da segurança jurídica é da essência do próprio Direito, notadamente de um Estado Democrático de Direito”

(apud DE CARVALHO, O., COSTA, E.. Segurança jurídica e o princípio da proibição de retrocesso social na ordem jurídico–constitucional brasileira. InterSciencePlace, América do Norte, ago. 2009. Disponível em:http://www.interscienceplace.org/interscienceplace/article/view/70/75. Acesso em: 29 Nov. 2012.)

É possível sustentar que a Constituição Federal de 1988, ao instituir um Estado Social e Democrático de Direito, reconheceu a jusfundamentalidade dos direitos sociais. Portanto, pode-se afirmar que os direitos sociais fundamentais não constituem mero capricho, privilégio ou liberalidade, mas premente necessidade, visto que a sua supressão ou redução ferem de morte os mais elementares valores da vida, a saber: liberdade e igualdade; e, consequentemente, essa supressão ou redução também serão ofensivos à dignidade da pessoa humana.

Logo, a proteção dos direitos sociais fundamentais, pelo menos referente ao seu núcleo essencial e/ou ao seu conteúdo em dignidade, apenas será possível quando estiver assegurado um mínimo de segurança jurídica, pois esta pressupõe a garantia de certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica.

Por fim, Carlos Mário da Silva Velloso enfatiza que as leis devem dispor para o futuro. Os atos anteriores regem-se pela lei do tempo em que foram praticados: tempus regit actum.

No direito brasileiro, em termos de direito adquirido, aplica-se o disposto no art. 6° da LINDB e o inciso XXXVI do art. 5° da CRFB, que dão contorno ao direito intertemporal pátrio. Assim, a aplicação imediata da lei há de ser feita sem prejuízo do direito adquirido, principalmente no que toca aos efeitos dos atos consumados anteriormente à vigência da lei nova.

Portanto, conforme nos ensina Rubens Limongi França, nos casos em que a consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo, consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto, quando essa situação se fizer presente, ocorre a ultratividade da lei antiga que continua na regência daquelas consequências/efeitos.

(FRANÇA, Rubens limongi. Direito Intertemporal Brasileiro. São Paulo: ed.RT, 2 ed., 1968, p 208).

Explicitando, uma vez iniciada a eficácia de uma determinada norma, materializando-se o suporte fático de sua incidência, é dizer, o fato nela previsto, há automaticidade, incondicionabilidade e inesgotabilidade no processo de judicialização do mesmo fato.

Desse modo, uma vez qualificado juridicamente o fato pela norma vigente ao tempo de sua ocorrência como direito adquirido e/ou ato jurídico perfeito, é iniciada a eficácia jurídica que só se esgota quando as consequências que a regra imputou ao fato também se materializarem, consumarem-se, mesmo que isso ocorra após sua revogação.

(MELLO, Marco Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. São Paulo:Saraiva, 8° ed. 1998, p.59-63).

Com essa tese, fomos vencedores em sede de apelação.

 

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