Entrevista com a revista Península: A inadimplência e a crise – da proteção aos ataques dos credores ao direito ao crédito.

1-     REVISTA: ARAGÃO, quais os impactos da crise pandêmica da COVID-19 no DIREITO das pessoas e das EMPRESAS?

                              Primeiramente gostaria de agradecer o convite da Revista Península para esta entrevista sobre um tema atual e polêmico, objeto de muitos debates no meio jurídico e acadêmico que, realmente, merece ser esclarecido, tanto pelo ângulo das pessoas física e jurídicas mais afetadas pela crise, e que, possivelmente, estarão ou já estam descumprindo obrigações assumidas em tempos de normalidade, como também os credores dessas pessoas que tiveram ou ainda vão ter frustradas suas expectativas de direito. Como se trata de uma entrevista destinada a nossa comunidade, vou evitar o juridiquês para que a leitura da entrevista se torne menos enfadonha e compreensível para aqueles não têm formação jurídica e, procurarei ter uma objetividade que caiba no espaço que nos é destinado para esta publicação.

                              Respondendo sua pergunta, assistimos que direitos até então considerados absolutos e imutáveis, não são absolutos e imutáveis em tempos de excepcionalidades em razão de crises, seja ela sanitária, econômica/financeira, de segurança ou social. Contudo, destaca-se, que nosso tema está restrito a crise sanitária e econômica, esta última como consequência.

                              Excepcionalizando os casos motivadores do estado de Defesa e de Sítio expressos na Constituição Federal, assistimos a restrição do direito de ir, vir e ficar, de reunião, de livre uso, gozo e fruição da propriedade ( neste caso os estabelecimentos empresariais impedidos do exercício da atividade) de direitos sociais fundamentais (trabalhistas) suspensos ou mitigados, e o pior tudo, por ordem de Lei ordinária temporária ou mesmo por medida provisória, o que contraria materialmente e formalmente a suspensão ou mitigação desses direitos, mas consideradas constitucionais pelo STF, justamente em razão da necessidade urgente de adaptação do direito à crise.

                              Esses direitos considerados como imutáveis (cláusulas Pétreas) sofreram restrições temporárias e quantos aos direitos sociais que podem ser alterados, mas sendo vedado seu retrocesso, também sofreram severas restrições.

                              A lição que tiramos disso é que o direito pensado, criado e efetivado em tempos de normalidade pode e deve ser alterado e adaptado, temporariamente, destaca-se, em tempos de crise, pois o direito do todo se sobrepõe ao direito de alguns e, por isso, entendemos que mesmos os direitos que foram adquiridos (direitos adquiridos, ato jurídico perfeito e coisa julgada) podem ser também temporariamente suspensos ou  mitigados, ainda que isso venha a ferir, temporariamente, princípios ou mesmo princípios-normas como, por exemplo, o da Dignidade Humana, pois ficar em casa sem receber a visitas ou ir visitar, nossos pais, irmãos, amigos, namoradas, netos etc, e aliado ao fato de  não poder frequentar restaurantes, academias, fazer compras, enfim, socializar, não é viver dignamente, mas o direito à vida do qual o direito a saúde é derivado, provou, neste tempo de excepcionalidade, que se sobrepõe a todos os demais direitos, pois não há vida digna sem saúde ou mesmo não há vida, ainda que o entendimento majoritário da doutrina seja de que não há hierarquia entre os princípios constitucionais e de que o princípio-norma da dignidade humana seria um super princípio, isso não se demonstrou verdadeiro com a crise do COVID-19. .

2-     REVISTA: ARAGÃO, como ficam as obrigações assumidas pelas pessoas físicas e Jurídicas em tempos de normalidade, mas que essas pessoas não estão podendo adimplir e como fica também a situação das pessoas titulares desses créditos?

                              O ideal éramos ter em nossa Constituição um dispositivo que autorizasse um dos Poderes da Federação, de preferência o Legislativo, a legislar com muita liberdade em tempos de crise, por meio de leis temporárias, com força suficiente para suspender ou mitigar direitos fundamentais e direitos adquiridos, e a flexibilizar a rigidez contratual da força obrigatória dos contratos desde que caracterizada a imprevisão em razão da força maior e de que, tais fatos tenham gerado assimetrias entre os contratantes, ficando um deles em situação contratual preponderante em relação ao outro, e de que, a obrigação de um tenha se tornado onerosamente excessiva.

                              As Medidas Provisórias não suprem essa lacuna, visto que nenhuma lei pode afrontar a Constituição,então sem o permissivo constitucional essas Leis serão sempre material e formalmente inconstitucionais e, cada uma delas que entre em vigor, logo temos o questionamento das representatividades dos grupos que foram atingidos desfavoravelmente por seu teor ou por partidos políticos que tem por matriz ideológica a preservação e conquistas de direitos sociais, instando o STF a se posicionar e gerando na população, uma sensação de insegurança jurídica antes do pronunciamento do STF e antes da conversão da MP em lei.

                              A legislação da crise 14.010/2020 no que diz respeito ao direito privado, em especial contratos e obrigações, deixou a desejar.

                              Para os contratos firmados em tempos de normalidade e cujos efeitos se estendem durante o tempo de excepcionalidade, deve haver legislação de proteção contra os efeitos do descumprimento das partes desfavorecidas no contrato, ainda que a Legislação civil brasileira tenha mecanismos de proteção, é importante as regras ficarem claras para que se evite a chuva de ações na justiça e aumento dos custos com defesa dos  interesses da parte já fragilizada por sua situação financeira declinante.

 

                              Nos tempos de crise há, inevitavelmente, confronto com o direito e princípios jurídicos criados em tempos de normalidade, em razão do caráter de urgência que se impõem. Porém, para as partes favorecidas pela crise, os oportunistas contratuais, alegam que a legislação da crise é um verdadeiro ataque aos direitos adquiridos e ao princípio da confiança contrataual.

                              Contudo, resta claro que o argumento de que o que valeu antes deve valer depois, são mitigados pelos seguintes argumentos: O direito em tempos de normalidade somente não será suspenso ou mitigado se o contexto factual de aquisição desse direito não se alterou nos tempos de crise (ceteris paribus e rebus sic stantibus) e que a legislação dos tempos de normalidade deve ser modificada em correspondência com as modificações que ocorram na hipótese fática da aquisição do direito específico ( mutatis mutandis).

 

                              De fato a Legislação Brasileira têm mecanismos de proteção para esses tempos de crise. Os decretos de calamidade pública Federal e os decretos de estado de emergência editados pelos estados e municípios já caracterizam a força maior prevista no art. 393 e seu parágrafo único do Código Civil Brasileiro. O isolamento social, necessário ressalte-se, tornou muitas obrigações impossíveis de serem cumpridas e, assim sendo, aplica-se o art. 248 do Código civil.

                O pacto social de convivência e boa fé, onde não se permite ninguém lesar ninguém, faz com que as cláusulas penais dos contratos sejam mitigadas neste momento e repactuadas em razão da imprevisibilidade (art. 317 do CCB). O que se espera, é que, o seu parceiro contratual, seja leal, compreensivo, compassivo e solidário, pois não pode o contrato, assinado em uma outra ambiência social e negocial, tornar-se uma sentença de morte financeira ou econômica ( aplica-se aqui para a interpretação dos contratos, também para momentos de crise, os incisos III e V do §1° do art. 113 do CCB).

                O art. 422 do Código Civil expressa que os parceiros contratuais devem guardar tanto na conclusão como na sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.

E não é só!

                Embora o art.421-A do CCB  expresse que presume-se que os contratos empresariais são paritários e simétricos e que as alocações de riscos neles definidas devem ser respeitadas e preservadas (inciso II do art.421-A), também expressa que a revisão contratual poderá ocorrer de maneira excepcional (inciso III do art. 421-A), justamente o momento em que vivemos da crise do COVID-19.

                A redução do valor da parcela (obrigação de pagar), tornou-se possível, se extremamente excessiva para a parte com essa obrigação, em razão da perda de receita em virtude do isolamento social e seu efeito cascata. Por certo, os contratos, após firmados, geram expectativa de direito, mas se a obrigação tornou-se impossível de cumprir, aplicam-se os arts. 248 c/c 478 c/c 317 todos do CCB, mas se ainda há possibilidade de cumprí-la mediante uma redução proporcional aos impactos financeiros sofridos pela parte com obrigação de pagar, aplicam-se os arts. 479 c/c 480 ambos do CCB, por mais específica que seja a lei de regência do contrato.  

                Temos também a hipótese do risco de não cumprimento de uma das partes contratantes na obrigação de dar (entregar) coisa certa por perda considerável em seu patrimônio, neste caso, como efeito colateral do isolamento social, pode a outra parte recusar-se a cumprir com a obrigação que lhe incumbe até que o outro contratante satisfaça a obrigação que lhe compete ou lhe dê garantias (art. 477 do CCB).

                              Para as pessoas físicas, nas relações de consumo, no que diz respeito ao não cumprimento da obrigação impossível, aplicam-se os arts. 248 c/c 317 c/c 478 do CCB por ser fonte subsidiária do CDC e também em razão da teoria do diálogo das fontes. Porém, há permissivo legal no CDC para a revisão dos contratos das prestações que tornarem-se excessivamente onerosas em razão de fatos supervenientes à conclusão do contrato (inciso V do art. 6° do CDC).

                              Ademais, as regras de consumo são normas de ordem pública (art. 1° CDC) e sua política tem por objetivo o atendimento as necessidades do consumidor, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria de sua qualidade de vida, entre outros. Para tanto, exige o código consumerista, que haja harmonização  de interesses dos participantes das relações de consumo sempre com base na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores (inciso III do art. 4 do CDC).

                              Por fim, para os todos os casos onde  sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, por mais específica que seja a lei de regência do contrato, isso em razão de sempre o código civil ser sua fonte subsidiária, ou mesmo em razão da teoria do diálogo das fontes, ou em razão do que expressa o art. 5° da LINDB, que determina que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e ás exigências do bem comum.

                              Contudo, o que se espera não é que TODAS as questões de descumprimento de obrigações causadas pela alteração da ambiência negocial e da quebra da base do negócio jurídico, por questões extraordinárias, imprevisíveis e inevitáveis pelo ser humano, fiquem ao alvedrio de parceiros contratuais oportunistas e que, para defesa de seus interesses, o parceiro contratual que já está com suas forças psicológicas e financeiras prejudicadas pela crise (destaca-se que, se a imprevidência for anterior, não se aplicam as teorias da crise aqui informadas), tenha que suportar os custos da defesa de seus interesses no judiciário com a incerteza de sucesso, vez  que, se sua ação for distribuída para um Juiz positivista, que adota a teoria da “santidade dos contratos” (pacta sunt servanda) e que entende que todas essas mazelas estão contidas no risco da atividade empresarial, o contrato que fora firmado para ser um bom negócio se tornou, na verdade, em uma sentença de morte financeira. Para se evitar que tal ocorra, é que precisamos ter uma legislação de crise, para o direito privado obrigacional e contratual, objetiva e dirigida para o descumprimento de obrigações como forma de proteção do HOLDUP. No entanto, teremos que ir ao judiciário para enfrentarmos os efeitos gerados pela crise no direito obrigacional contratual, mas não sem antes tentar negociar a exaustão (consensualismo).

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